Wednesday, February 28, 2007

sobre Pena Capital

Uma “ideia tão simples” é como, num texto sobre Herberto Helder (in Obra Poética de Ruy Belo. Volume 3. Lisboa: Presença, 1984), Ruy Belo qualifica uma sua observação sobre poesia. A poesia, diz ele, não é o meio mais apropriado para alguém se fazer entender. Mário Cesariny de Vasconcelos subscreveria, com certeza, esta afirmação. A sua obra encontra-se entre o que de mais avesso à retórica há na poesia portuguesa.

“Há palavras imensas, que esperam por nós / e outras, frágeis, que deixaram de esperar”, dizem dois versos do poema you are welcome to elsinore (pág. 34). “Entre nós e as palavras, o nosso dever falar”. E, nesse dever da poesia, o que importa é não impedir que brotem “palavras que nos sobem ilegíveis à boca”.

O poema é uma forma de vida, diz Ruy Belo, no texto inicialmente referido. A poesia – o poder mágico da poesia – tem, por isso, consequências. Quando Mário Cesariny de Vasconcelos morreu, um amigo do poeta contava ao PÚBLICO (27 de Novembro de 2006) por que o autor de Pena Capital não quis ser cremado: “Tinha lido num tratado de esoterismo que, a haver alguma coisa depois da morte, seria a partir do osso sacro”, recordava o tal amigo. “O osso na base da coluna é o centro da energia espiritual, dormente na maioria das pessoas até à morte, segundo crenças esotéricas”, e Cesariny, que “‘olhava para a morte com grande gravidade’, sem qualquer certeza”, achava que, em caso de dúvida, o melhor seria não arriscar.

O poeta é, como, aliás, muitos notaram a propósito de Mário Cesariny de Vasconcelos, uma espécie de mago. Um xamã. A técnica por excelência xamânica, explica Mircea Eliade, num breve texto incluído no poema ode a outros e a maria helena vieira da silva (pág. 159), “consiste na passagem de um plano cósmico a outro” e “o xamã é detentor do segredo da ruptura dos níveis. Existem três grandes planos cósmicos ligados por um eixo central, o Pilar do Céu. Este eixo passa por uma ‘abertura’, um ‘buraco’, por onde o espírito do xamã pode subir ou descer em voos celestes ou descidas infernais”.

Subir em voos celestes – como nos versos “Muito acima das nuvens seja o centro / das nossas misteriosas poéticas / o irresistível anseio de viajar / um só movimento trabalhado à mão / nos ermos mais altos / mais desaparecidos” (pág. 117) – ou descer descidas infernais – como no poema sobre o massacre de Katyn (no bosque de Katyn, na Polónia, em Março de 1940, 22 mil prisioneiros de guerra polacos foram executados pelo exército soviético, tendo os corpos sido descobertos por soldados alemães): “Katyn? / Grande Descoberta! / O homem encontra / com tão pouco esforço / o pus o sangue / a peste a guerra” (pág. 103) – é o trabalho do poeta.

Para cima – “Daqui até Saturno sempre houve muito que andar” (pág. 48) – ou para baixo – “A 10 000 metros de profundidade” (pág. 100) –, há, portanto, nesta poesia “o irresistível anseio de viajar” (pág. 117). No poema autografia I, há, de resto, um singular registo: “tenho um pé que já deu a volta ao mundo”.

E o destino pode ser “uma paisagem extremamente à procura” (pág. 27) ou um corpo – “Em todas as ruas te encontro / em todas as ruas te perco / conheço tão bem o teu corpo”… (pág. 30). E o destino pode ser um andar, entre encontros e desencontros – “Muita vez vim esperar-te e não houve chegada / De outras, esperei-me eu e não apareci” (pág. 21) –, à procura, como no poema uma certa quantidade (pág. 27):

[…]
E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar

Às vezes, os trabalhos do poeta afiguram-se mais simples, como dizem estes versos de a carta em 1957 (pág. 139):

[…]
o poeta forjara realmente um plano:
louvar o ser amado
ter amigos leais
escrever todos os dias ou dia sim dia não
publicar (o possível)
e protestar com lhanesa com simplicidade quer pessoalmente quer
por telegramas contra toda e qualquer prepotência mandona

Este plano tão simples tão nacional
é que ficara longe da realização
para amar com decência eram precisas muitas muitas coisas
principalmente gente menos zangada
para ter amigos leais que seria preciso?
e protestar com lhaneza com simplicidade quem pode ter lhaneza e
simplicidade quando lhe dão para baixo em cima do cabelo com um pau?”

Tão simples e, afinal, de tão difícil realização. Na verdade, está “Ainda longe longe a cidade futura / onde ‘a poesia não mais ritmará a acção / porque caminhará adiante dela’” (pág. 135).

P.S.: As citações de Pena Capital são da 3.ª edição, aumentada (Lisboa: Assírio & Alvim, 2004).

Eduardo Jorge Madureira

Velha-a-Branca, 5 de Fevereiro de 2007

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