Tuesday, October 11, 2005

O Futuro - Abílio Brito

Devoro o meu futuro ao pequeno-almoço
Como-o devagar e silenciosamente
Entre os cornflakes e o pão quente

Se me esqueço de o comer vários dias
Torna-se tão grande que se nota por fora
Como um defeito físico
Olham-me o futuro demasiado grande
A sair do corpo
Difícil é comê-lo todo de uma só vez
Mas é indispensável parar e meter mãos à tarefa

Quando o futuro cresce demais
E não há tempo de o devorarmos inteiro
Deve dar-se-lhe pequenas dentadinhas logo de manhã
Transportá-lo escondido na sacola para a escola
Aproveitar os intervalos para o roer
É suficiente para que ele se mantenha em dimensões razoáveis
E não nos devore

É uma questão de técnica
Com o tempo aprendemos a fazê-lo
A manter o futuro dentro das dimensões possíveis
Para que ele possa caminhar connosco
Sem nos complicar demasiado a existência diária

Às vezes troco de futuro. Descardealizo-me.

Colo o futuro que não é meu à entrada de casa
Colo o futuro que não é meu à entrada de mim
Colo o futuro que não é meu aos dias próximos
Colo até caminhar certo com o futuro que não é meu

O meu futuro não é o meu futuro
É o futuro que eu construí resistindo ao meu futuro

Há um futuro para cada um de nós
Que nós conhecemos sem dizer palavra

É falso que haja várias possibilidades de futuro
Se fossemos por aqui
Ou se deixássemos de ir por ali
O nosso futuro não seria outro

A estrada das possibilidades é a nossa estrada e não outra
Abre-nos as nossas possibilidades e não outras
Fatalmente caímos no que somos
E nas possibilidades que o que somos nos dá

O meu futuro diz-me que por mais voltas que eu dê
Vou acabar sempre da mesma forma
Que me há-de vestir um dia
Que o hei-de vestir um dia

O que eu vivo não é o futuro
É a minha forma de lhe resistir

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