Tuesday, June 12, 2007

Maldoror

À semelhança de Lautréamont, queira o céu que os meus ouvintes não se escandalizem com estas palavras, nem pensem que perdi o pouco juízo que pudesse ter. Quis o destino – essa figura de estilo sombria e retorcida – que um dia me cruzasse com esta apologia do mal. Não me recordo já das circunstâncias que rodearam esse encontro, mas tenho uma vaga memória de estar num comboio. Não se preocupem – não há relatos de membros trucidados ou de corpos desfeitos.
Segui à risca o conselho de Lautréamont, dado logo nas primeiras linhas, e dirigi os meus passos para trás, antes de penetrar nos tais domínios inexplorados. Fi-lo, mais coisa menos coisa, durante quatro segundos. Depois segui em frente, perdi-me na leitura dos caminhos tortuosos do mal, da miséria dos espíritos e dos corpos. Saí incólume da viagem – ou talvez não, se acreditarmos que nunca saímos incólumes seja do que for, a não ser que sejamos cegos, surdos e burros.
O horror não está nos livros, nem nos filmes, nem na arte. O horror está cá fora, entre nós, solto e sem rédea. Escondido por trás de cada parede, de cada máscara, de cada mentira mal apalavrada. É esse o mal que me perturba, não a maldade de Maldoror, que nada mais é do que a personificação das nossas angústias e dos medos colectivos.
Erguei pois os olhos para encarar de frente a sombra e a escuridão, bebei das palavras de Maldoror o fel que nos tolda o espírito, e ouvi, ouvi com atenção os silêncios que flutuam na ausência, nas ausências que nos rodeiam.
Pediram-me que escrevesse um texto sobre o autor. A verdade é que de Lautréamont pouco sei. Morreu novo, algures em Paris, num tempo que não conheci e do qual, por isso, não sinto saudades. Como ele era na realidade, não sei. Se gostava de beber sangue ou de matar criancinhas, também ignoro. Mas nada disso interessa verdadeiramente. Suspeito que se deve ter divertido – e muito – enquanto contava a história maldita de Maldoror a todos nós, incautos leitores.

Sara Moutinho
(Escrevinhado num café do Porto, 4 de Junho de 2007)

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