Monday, November 07, 2005

sem título - Inês Barbosa

Alberta abre os olhos. Está na hora. Levanta-se vigorosamente, puxando os lençóis vermelhos para trás, de rompante. De chinelos de dedo, dirige-se ao WC para um duche rápido. Besuntando-se com o gel de coco, os pensamentos matinais surgem-lhe, ávidos e ainda confusos.
Há muito tempo que deixara de ter espelhos em casa, mas nestas alturas era-lhe impossível não reparar na gordura que teimava em resistir às sucessivas dietas e na celulite instalada, que nem o melhor-e-totalmente-infalível creme surtia efeito. Desagradava-lhe o corpo.
Já de toalha enrolada, desliga o toque irritante do despertador que só agora toca. Maquilha-se. Novamente as auto-depreciações: «estes papos debaixo dos olhos…as rugas, e este cabelo melado! A Sandrine é que tem sorte…» Pronto. Bastava iniciar o ritual punitivo (ao qual só faltavam mesmo os chicotes e restantes instrumentos de tortura) para logo lhe vir à memória a imagem desta que era a musa do escritório. A mulher a quem os anos não roçavam, que se mantinha sempre bela, fresca e feliz. E, ainda por cima, sinceramente simpática.
Ah, a inveja… Velho pecado! Sentada na beira da cama, Alberta chora. Chora porque se vê feia, envelhecida. Carcomida pelas oscilações do tempo que nela deixaram um espaço vazio. Ela sabe porquê e por isso chora, apodrecida numa solidão que soubera sempre disfarçar com uma glamourosa independência. A dor é imensa e sufoca. Tenta calar o ruído que lhe invade a mente, como um tumor que alastra rápida e fatalmente.
Liga o rádio e sintoniza uma estação noticiosa. Crise. Desemprego, Pedofilia. Aquecimento global. Gripe das aves. Bombas atómicas. Antraz. Tsunamis. Terroristas e terrorismos. «De futuro não haverá futuro», pensa, «tudo terminará e eu aqui neste pranto histérico e infantil…»
Ri-se: «o que são umas rugas comparadas com tamanhas tragédias?»
Veste-se. Envolvida numa renovada energia, enfia uma das suas melhores saias e uma blusa decotada a condizer e sai, porta fora, rumo ao trabalho.
Mas a névoa que lhe encerra os olhos não engana.
A cena repetir-se-á.

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