Wednesday, November 23, 2005

alerta à população

caros amigos, lamento informar-vos de que estou adoentado e que me será impossível realizar as sessões desta semana, quer a de quarta, quer a de sábado.
assim, hoje, dia 23 de novembro, e sábado, dia 26, é como se fosse festa e não há trabalho.
fiquem bem. abraços

Friday, November 11, 2005

Tu - Vítor Costa

Deitei-me na intersecção de uma esquina formando uma tangente virtual. De imediato senti olhares indiscretos furiosos pelo status da minha presença. Como um periscópio, revirei os meus olhos na direcção da parede obscura dessa esquina. Tatuadas no seu corpo rugoso estavam apenas duas letras: TU. Impelido pela curiosidade levantei-me e observei novamente. Aproximei-me e contornei o debruado das letras no singelo cimento com o meu indicador. O caminho era sinuoso, mas bastante retórico. O seu significado parecia flutuar para o divã de um Freud. Atingindo o fim senti uma paz interior rejuvenescedora. Voltei-me e deparei com um miúdo a observar-me perto do lago. A sua face era lânguida e arredondada. Tinha o cabelo espetado e feições angelicais. O seu corpo esguio e pequeno parecia uma marulha de papel. E os seus olhos eram diferentes, especiais. Não consegui evitar o seu hipnotismo mirabolante. A insustentável leveza do seu olhar focou os meus olhos como uma lente microscópica. Uma sensação de dejà-vu percorreu o meu inóspito inconsciente. Confuso e desorientado tentei encontrar o norte na minha bússola. No entanto, um estranho campo magnético impedia o meu movimento. Os meus sentidos estavam a passar por um autêntico triângulo das bermudas. Já não conseguia aceder ao meu cérebro, uma vez que este rejeitava todas as minhas passwords. Amarrado nas vicissitudes de um colete-de-forças invisível rendi-me à evidência.

Tuesday, November 08, 2005

Um eco de Jorge Melícias (a partir de um poema seu) - Bruno Pereira

molestação animal/racional

Absorto, o monstro espera- te distante
a crina aberta no reverso do bafo
junto ao lago onde lhe fecundaste um filho.
rapidamente quebrarás os dedos
para que a memória te oculte o cheiro.
não leves criança alguma pela mão
ou sequer um resto do que sejas.
haverá um rastilho nas tuas lágrimas
que comunicará com o fogo
para que o possas incendiar

Monday, November 07, 2005

sem título - Inês Barbosa

Não é esta. Passa à seguinte, enquanto puxa o cabelo que teimosamente lhe atravessa os olhos. Bolas, também não é esta. Porque é que as pessoas têm de ser tão desorganizadas? Não gosta de desorganização. Ela própria tem um molho de chaves, provavelmente ainda mais volumoso do que este, e todas elas têm uma etiqueta a dizer o que abrem. Como toda a gente devia fazer. Prédio. Apartamento. Correio. Carro. Garagem. Arrecadação. Emprego. E nunca se engana. Leonor nunca se engana.
A porta abre-se, num óbvio ranger de casa velha. Espirra violentamente. Mais uma vez. Olha em volta, tentado reconhecer o outrora conhecido. As paredes brancas, pintadas toscamente. As portadas de madeira de cor indefinível. O corredor. A casa tem muitos corredores e ela lembra-se bem dos corredores. Sobe as escadas, sujas de pó e carcomidas pelos bichos. Sobe os degraus, um a um, vagarosamente, como que adiando um encontro, que sabe inadiável. Olha de novo as paredes, discorrendo da necessidade imperiosa de uma nova pintura. Quem sabe de outra cor? … O branco é cru e tenso. Incomoda-a. Bem, isso já não é assunto dela. Já não tenho nada a ver com isto.
Hesita espreitar os quartos. De resto, pouco há para ver. A casa está praticamente vazia. Subsistem apenas uns candeeiros de tecto ridiculamente antiquados e espalhafatosos, com cristais rendilhados e de gosto duvidoso. A adornar um dos quartos do 1º andar, baloiça ainda uma velha cortina floreada, de um branco já muito amarelecido. Atroz. Na sala de estar, o soalho continua a envergar aquela tapeçaria escura, gigantesca, quase três metros por três, com a imagem de uma caçada. Os homens de bigodes segurando coelhos, os galgos a agitarem-se furiosamente, as espingardas…Não que alguém da sua família alguma vez tenha ido à caça. Nem faço a mínima ideia como isto veio cá parar!
Como não podia deixar de ser, não foram retirados os Cristos e as Nossas Senhoras, de todos os tamanhos e feitios, que se espalham por toda a casa e que durante tanto tempo lhe povoaram (e vigiaram) os seus actos e, para seu terror, os seus pensamentos. Arrepia-se. Olhando desconfiada para ambos os lados, como se acreditasse que alguém pudesse de facto estar a observá-la, vira ao contrário um dos crucifixos, de madeira e porcelana, que se encontrava à sua frente. Este já não me pode ver.
Caminha para a cozinha. A casa está realmente muito vazia. Grande, vazia e silenciosa. Como sempre o fora. Por cima da bancada de mármore encontra-se apenas uma gigantesca jarra vidrada, decorada com umas flores vermelhas, claramente artificiais. Herança de uma tia-avó de Vila Real. Não há nada dentro dos armários, forrados ainda com o papel original. Verde e de riscas arroxeadas, já semi-esburacado. Caramba, já podiam ter mudado o papel, era o mínimo! Sorri, olhando os azulejos do chão, um xadrez preto e branco. Provavelmente a única coisa que verdadeiramente gostava na decoração daquela casa. Apesar de ter sido nele que escorregou e partiu o tornozelo esquerdo. As dores. Lembra-se vagamente. Era miúda, não sei, mais ou menos uns dez ou onze anos. A mãe tinha acabado de passar o chão a pano. Ela queria brincar para o quarto que ficava no mesmo piso. Escorregou, estatelando-se no chão. Andou de gesso mais de um mês. A mãe repetia-me «as muletas fazem muito barulho, vê se ficas no teu quarto».
Sentada no alpendre, Leonor acende um cigarro. A sua única insensatez.
- Preciso de ter algo na boca, preciso de estar sempre a morder qualquer coisa, – diz ela para se justificar.
É claro que vêm sempre as posteriores piadinhas obscenas:
- Ah, precisas de ter alguma coisa na boca?! Eu digo-te o que devias pôr dentro da boca…
Mas o certo é que durante a noite, se calhar por ter nada em que morder, range os dentes. Sabe isso, porque lhe doem ao acordar. É capaz de ir um dia destes à farmácia comprar um daqueles moldes esponjosos que existem para esse efeito. Deve haver. Pelo menos, foi o que viu na Internet, numa dessas páginas sobre saúde que ela tanto aprecia.
Amanhã tenho de ir à Agência entregar as chaves e tratar do resto dos papéis. Vai vender a casa. Já há muito que o tencionava fazer. Afinal já nem vive em Braga. Agora esta agência imobiliária propôs-lhe um preço bastante aceitável e parecia não ser excessivamente burocrática. O nome é que é ridículo: “Casa D`Oiro”. Quando lhe telefonaram teve de se conter para não rir (ela que até nem é muito desse hábito), lembrou-se logo do Saddam e da sua multimilionária mansão forrada a ouro. Até imaginou a funcionária que lhe ligava (uma senhora com uma voz irritantemente cacarejante e de um formalismo típico de vendedor) rodeada de paredes douradas, estantes, quadros, cadeiras, tudo em ouro, o próprio telefone, a própria mulher, tudo a luzir, resplandecente.
Nem sabe bem o que vão fazer com a casa. Creio que será uma Pousada ou uma Residencial, uma coisa do género. De facto, o tamanho é mais do que suficiente. Quatro andares, uns jardins enormes. Por fora, nem se imagina quão espaçoso é. Os quartos não são muito grandes, não, mas chegam perfeitamente para colocar uma cama, até de casal, uma mesinha de cabeceira e um armário, se for pequeno. Normalmente, os quartos de pousada não têm muito mais do que isso. É a lei da essencialidade. Nada de adornos ou entretenimentos inúteis. O supérfluo é banido. Racionalidade. Sobriedade. Como ela gosta.
Está a ficar frio. Abre a pequena mala de viagem que trouxe consigo e retira cuidadosamente um casaco de malha castanho, tentando não desmanchar o restante. Inicialmente, não tinha pensado passar cá a noite, nem tão pouco lhe agradava, mas também não lhe parecia acertada a ideia de despender quase quarenta euros num qualquer quarto de Hotel, quando, ainda por cima tinha casa onde ficar. Quando a irmã lhe ligou, respondeu logo que não:
- Porquê Mafalda? Porque é que tenho de ser eu, se sou a que estou mais longe?
- Porque és solteira.
Essa era a justificação do costume. Como se ser solteira fosse equivalente a não ter vida própria. Que culpa tenho eu que as minhas irmãs se tenham lembrado de fazer uma carrada de filhos birrentos e casado com maridos machistas e pedantes?
Leonor irritava-se com elas. Falavam-lhe do alto da sua vidinha perfeitinha e socialmente correcta, pressionando-a a ter uma forma de ser, de estar, de pensar que não lhe dizia nada. Por isso, cada vez estava menos com elas. Primeiro escapara aos aniversários (delas e das suas ninhadas), depois aos baptizados e até se esquivara ao casamento da Catarina, a mais recente noiva. Por fim, já nem sequer foi aos últimos três Natais, fugindo assim às infindáveis perguntas e insinuações. Não caso porque não quero. Na verdade, nem entendia porque é que as pessoas casavam e tinham filhos. Só via inconvenientes. Vou passar toda a minha existência a aturar o futebol e a cerveja, a cerveja e o futebol, a chatear-me por causa das cuecas no chão ou do mijo no tampo da sanita, a fingir que tenho dores de cabeça para não ter relações sexuais? Não, isso não é para mim. E crianças? Mudar fraldas sujas de merda, a roupa cheia de vomitado… Ranhosos. Com piolhos. A casa sempre desarrumada, brinquedos por todo o lado. Gritar-lhes para comer, dormir, estudar. Barulho, barulho, barulho. Não, decididamente isso não é para mim.
- E o Roberto, porque não vai ele?
- Oh, já sabes como ele é, tem a sua vida, está a trabalhar num sítio novo.
A trabalhar! Aquele salta de emprego em emprego, permanentemente insatisfeito, inadaptado, sempre em viagens e noitadas. Apeteceu-lhe esganar a irmã. Ao maninho tudo é desculpável e aceite. Podia aprontar as maiores asneiras, as maiores atrocidades, que toda a gente lhe passava a mão pelo cabelo. Ela percebia porquê. Único rapaz no meio de quatro irmãs e, ainda por cima, o mais novo. Ela própria tinha também tendência a perdoar-lhe tudo. Até porque o passado lhe trazia cumplicidades mútuas … Mais do que desejaria.
Novo arrepio. Estou mesmo a ficar gelada, deve ser de estar desabitada há tanto tempo. Os olhos começam a pesar, ardendo, e o corpo a pedir descanso. A viagem foi longa. Devia ir dormir. Pendura a carteira no ombro e segurando a mala de viagem na mão, Leonor sobe as escadas para subir ao último piso. Mafalda dissera-lhe que o sofá permanecia na sala e que podia lá dormir. Não sabe em qual delas está. Antigamente, ria-se com a distinção. Sala-de-estar. Sala-de-jantar. E para provocar perguntava à mãe:
- Posso estar na sala-de-jantar?
Amélia, a irmã mais velha, convicta da sua nobre função, puxava-lhe com força o braço, para que se calasse. E a mãe atirava-lhe aquele olhar fuzilador que a fazia fugir de imediato para o quarto.
Entra na sala-de-estar. Parece nua sem o imenso candelabro de cristal, pendurado no tecto de estuque, sem as quatro estantes recheadas de romances e enciclopédias, sem os tapetes escuros e densos, sem o móvel que albergava o gira-discos, sem as cortinas bourdeux, que de tão pesadas não se moviam com o vento. Foi quase tudo levado pelas irmãs para o seus apartamentos a estrear. Ficara apenas uma tela, pintada por um qualquer retratista exageradamente clássico. A mulher do quadro era tão estranha, que em criança ficava horas a observá-la, imaginando que tinha tido um grande desgosto, que era viúva ou coisa do género, porque estava vestida de um roxo muito escuro e tinha os olhos muito descorados e muito tristes e não sorria. Este, não levaram elas. Nem o móvel de louças que odiavam. Uma infinidade de pratos, chávenas, pires, bules, travessas de porcelana banal, mas preciosa, à espera de serem usados nas cerimoniosas visitas, que nunca chegaram.
E o sofá. Largo, compacto, de formas arredondadas e arcaicas. Possui tantos orifícios e rasgões, que o cabedal escuro se confunde agora com a esponja amarela do interior, oferecendo um lugar apropriado à criação de ácaros e outros que tais. Leonor senta-se, apreensiva. Abre de novo a mala. Dentro, apenas o fundamental. Uma muda de roupa, impecavelmente dobrada, vincada, passada a ferro. Um pijama listado em tons esverdeados, suficientemente quente, uns chinelos cuidadosamente enfiados num saco de plástico e uma bolsa cinzenta, contendo todos os produtos necessários à sua higiene. No topo está um livro comprado da última vez que foi ao Hipermercado. Depois de passar a caixa, olhara para ele, questionando-se porque o comprara. Se já sei que não o vou ler! Mas não conseguira resistir ao grande cartaz com a fotografia do autor da moda, sorridente, com o dito cujo na mão, nem às prateleiras recheadas de dezenas de exemplares do mesmo livro nem, principalmente, à capa em relevo, com cores vistosas e hipnotizantes. Mais um para atirar para a estante. Na divisão de fora, tem ainda dois pares de cuecas idênticos, candidamente brancos e despegadas de rendas e umas peúgas a condizer. Na parte inferior, esconde-se uma manta azul de flanela e uma almofada ortopédica. Tudo primorosamente organizado e no respectivo lugar.
Despe-se. Lentamente, peça por peça, dobrando, alisando e colocando no devido compartimento. Veste-se. Lentamente, abrindo, desdobrando, enfiando peça por peça, no seu corpo esguio e afiado. Leonor é magra, talvez até excessivamente magra. As suas formas angulosas e ossudas assemelham-se a troncos de sobreiros, robotizados e geométricos. O rosto cavado e rectilíneo parece retirado de uma reportagem auswitziana. Olhos grandes e baços, sem pestanas. As olheiras eternas e inevitáveis. A tez clara e insípida da pele, precocemente rugosa. O nariz correcto e comprido. A boca fina, descolorada. O cabelo liso, fraco, cortado ligeiramente acima do ombro. Sem peito, sem ancas, é decididamente pouco feminina.
Incrível. Enquanto se manteve afastada desta casa, desta cidade, nunca se lembrara de nada, nem de ninguém do seu passado. Um ponto inerte e vazio. Estático. Sem infância, sem família, sem recordações ou angústias. Eu apenas eu. Agora, decorridas umas míseras três ou quatro horas, dentro destas paredes, as memórias chegavam-lhe em catadupa, atropelando-se umas às outras, sôfregas e imprevisíveis.
Lembra-se bem deste sofá. E do pai nele sentado, nas raras vezes em que se erguia da cama. Arrastando os chinelos, pesadamente, subia a custo a longa escadaria, amparado pela mulher, que logo desaparecia. Escolhia atentamente o disco que queria ouvir, as mãos tremendo-lhe um pouco, e retirava-o da capa, pousando-o com toda a delicadeza na base, com a mesma calma com que segurava na agulha e punha a música a tocar. Sentava-se então no sofá, com as costas muito direitas e os braços alinhados ao corpo, ouvindo, compenetrado. Leonor ficava a observá-lo, na ombreira da porta, em segredo, com a luz da clarabóia a roçar-lhe o cabelo. E via-o, aquele homem, envelhecido, de pijama e robe vestido, sem dizer uma palavra, só os olhos brilhando enquanto desfilavam Bach, Schubert, Mozart, Litz, desfrutando de cada nota, de cada som e o seu corpo vibrando, em delírio, numa sintonia com a doçura de Chopin ou a raiva de Beethoven e chorava…o meu pai chorava e eu chorava. E tinha certeza, Leonor tinha a certeza, de que, se alguma vez quisesse falar com o pai, comunicar-lhe algo, chegar a ele, teria de ser naquele exacto momento. Entre o arranhar de um violino e o tinir do piano.
Luz. Está num quarto pequeno da casa. A luz entra pela janela e ela esta deitada numa cama forjada a ferro. Os cobertores cobrem-na até ao queixo e ela treme. As irmãs entram. Riem. Os seus risos ecoam pelas paredes nuas e ela zanga-se, chora. Um menino chama por ela. Tem a pila de fora das calças de pijama: Leonor! As irmãs riem e ela vê as suas bocas enormes e as suas línguas ásperas e os seus dentes brancos e as suas gengivas rosadas. A mãe atravessa o corredor. A mãe é muito grande. Atravessa o tecto, quebrando-o. Tão grande que ela esconde a cabeça dentro dos cobertores cinzentos. Treme. Debaixo dos lençóis está o pai. Pai. O pai sorri. Parece tonto, pai. Ele não entende. O pai não faz mal porque é muito pequenino. O pai tem as calças cheias de xixi. Pai, devia ter pedido para ir à casa de banho. Parece um bebé. Ego sum qui sum. Não tem juízo, papá. A cabeça de novo de fora. A luz. Branca. Ofuscante. Sente frio na nuca. Sente algo a escorrer. Tenho algo na cabeça. Põe a mão e sente algo pastoso, liquido. Olha os dedos e vê sangue, um sangue tão escuro que a assusta e enoja. Corre ao espelho. Não pode ser real. Grita. Tem um buraco colossal na nuca e o sangue sai-lhe em golfadas e cobre-lhe a cara, os cabelos, a roupa de vermelho. Tem um buraco na nuca. E dói. Dói demais.

4h13. Leonor acorda sobressaltada. Os cabelos ensopados em suor. Está tonta. Confusa. Tem a sensação de ter um balde na cabeça, enevoada e surda. Que pesadelo. Vai à janela e acende um cigarro. Precisa de apanhar ar. Respira fundo, aspirando a brisa que corre. Acho que vai chover. Não entende onde foi buscar aquelas coisas esquisitas, nem tão pouco se lembra da última vez que sonhou. Está escuro, deve ser bastante tarde. Observa o largo em frente, iluminado pelos enormes candeeiros. Largo de Senhora-a-Branca. O jardim, a fonte já há muito seca e os arcos de flores, por onde sempre adorou passar. Por baixo, como se fosse uma fada num jardim encantado. As pessoas devem estar todas a dormir, porque não se vê qualquer luz acesa. Vê o antigo centro de saúde, onde durante tanto tempo tomou vacinas, transformado agora numa bizarra construção pós-moderna, onde uma dita celebridade terá possivelmente um apartamento luxuoso. Estratégias de marketing, mas funciona. Ao lado, na rua 31 de Janeiro, não passa um único carro. Tudo permanece mudo e imóvel, oprimido pelo silêncio da noite. O vento sopra mais forte e caiem as primeiras gotas, grossas e pesadas, levantando-se o cheiro a terra seca, próprio de uma chuva inesperada depois de um dia quente de Primavera. Fecha a janela. Vou dormir.

sem título - Inês Barbosa

Alberta abre os olhos. Está na hora. Levanta-se vigorosamente, puxando os lençóis vermelhos para trás, de rompante. De chinelos de dedo, dirige-se ao WC para um duche rápido. Besuntando-se com o gel de coco, os pensamentos matinais surgem-lhe, ávidos e ainda confusos.
Há muito tempo que deixara de ter espelhos em casa, mas nestas alturas era-lhe impossível não reparar na gordura que teimava em resistir às sucessivas dietas e na celulite instalada, que nem o melhor-e-totalmente-infalível creme surtia efeito. Desagradava-lhe o corpo.
Já de toalha enrolada, desliga o toque irritante do despertador que só agora toca. Maquilha-se. Novamente as auto-depreciações: «estes papos debaixo dos olhos…as rugas, e este cabelo melado! A Sandrine é que tem sorte…» Pronto. Bastava iniciar o ritual punitivo (ao qual só faltavam mesmo os chicotes e restantes instrumentos de tortura) para logo lhe vir à memória a imagem desta que era a musa do escritório. A mulher a quem os anos não roçavam, que se mantinha sempre bela, fresca e feliz. E, ainda por cima, sinceramente simpática.
Ah, a inveja… Velho pecado! Sentada na beira da cama, Alberta chora. Chora porque se vê feia, envelhecida. Carcomida pelas oscilações do tempo que nela deixaram um espaço vazio. Ela sabe porquê e por isso chora, apodrecida numa solidão que soubera sempre disfarçar com uma glamourosa independência. A dor é imensa e sufoca. Tenta calar o ruído que lhe invade a mente, como um tumor que alastra rápida e fatalmente.
Liga o rádio e sintoniza uma estação noticiosa. Crise. Desemprego, Pedofilia. Aquecimento global. Gripe das aves. Bombas atómicas. Antraz. Tsunamis. Terroristas e terrorismos. «De futuro não haverá futuro», pensa, «tudo terminará e eu aqui neste pranto histérico e infantil…»
Ri-se: «o que são umas rugas comparadas com tamanhas tragédias?»
Veste-se. Envolvida numa renovada energia, enfia uma das suas melhores saias e uma blusa decotada a condizer e sai, porta fora, rumo ao trabalho.
Mas a névoa que lhe encerra os olhos não engana.
A cena repetir-se-á.

sem título - Pedro Teixeira

a manhã rasgada na pele
a pele queimada nos lençóis
o vento lá fora
em recorte do teu nome
e eu
a esquecer-me
de ser sonho

Thursday, November 03, 2005

Jorge Melícias na sessão de Sábado dia 5

Meus caros:
O poeta Jorge Melícias será o convidado para uma conversa e leitura na sessão de Sábado próximo, dia 5. Assim, a sessão está aberta a todos os inscritos no curso, quer pertençam à turma de Sábado, quer pertençam à turma de Quarta-feira.
O Jorge Melícias publicou os seus mais recentes livros nas Quasi Edições e na Cosmorama. Se vos for possível, passem-lhes os olhos. Aconselho particularmente a nova edição de «iniciação ao remorso» editada pela Cosmorama; quando a encontrarem vão perceber porquê.
Outros títulos do autor: «a luz nos pulmões», «o dom circunscrito» e «incubus».
Abraço, e até Sábado.

Wednesday, November 02, 2005

sem título - Magda Cerqueira

Ao longe latem cães para espantar a quietude do local
Um ou outro pássaro chilreia breve
E eu sonho com a vida em frente cheia de parra e uva
Sonho com as laranjinhas que dão cor à paisagem
E oferecem o seu interior sumarento
À minha gulodice doentia de esperar
E, de repente, assalta-me a inquietação:
"Falta aqui um caçador para dar movimento à paisagem!"
Ó meu viver bucólico de nevoeiros azuis de Avalon no horizonte!
Ó minhas naus sempre prestes a partirmas nunca prontas
Quando é hora?

Tuesday, November 01, 2005

Da Silva - Convidado para a sessão de amanhã

Caros amigos:
amanhã, quarta-feira, a sessão vai contar com a participação do ilustrador Da Silva (Luís da Silva) que poderão conhecer melhor - e em avanço - através da sua página pessoal (clicar aqui).
O Luís é um ilustrador raro, com qualidade suficiente para dar bom nome ao vinho do porto por mais mil anos. Tem trabalhado afincadamente para alguns jornais e revistas de referência em Portugal e, ainda que se conservem inéditos, criou e ilustrou algumas histórias para crianças e não só.
Amanhã serão bem vindos todos os participantes do curso, inscritos para a tuma de quarta-feira ou para a turma de sábado.
Agradeço que tragam preenchida a bd que vos passei como exercício na sessão passada.
Até amanhã. Abraço.