Friday, October 14, 2005

semtítulo - S. C.

“Polícia do Estado. Abram a porta!”
Estavam a entrar em mais uma casa. Na passada semana tinham prendido os dois filhos do Sr. Antero, alfaiate, por suspeitas de envolvimento em actividades subversivas. Esta noite, a investida era no n.º 23 do Largo da Senhora-a-Branca.
Dentro da casa, o terror tomava conta de todos. Maria das Dores compreendeu que vinham por si. No escuro, trocou a camisa de noite por uma roupa de dia, e esperou que a levassem.
Ouviu o patrão assomar-se à janela do segundo andar, e gritar para os homens na rua: “Não disparem! A porta está trancada! Vou descer a abri-la”.
Os golpes de coronhadas na porta acalmaram por segundos, e ouviu-se o ranger grave do portão de ferro, seguido do arrastar da madeira, e de um tropel de passos a precipitar-se no rés-do-chão.
“É aqui que vive Maria das Dores Silva?” – grunhiu aquele que devia ser o chefe de pelotão. O patrão da casa assentiu e indicou-lhes, sem protestos, o quarto da criada, no 1.º andar.
Maria das Dores aguardava à porta do quarto, lívida, e deixou-se empurrar escada abaixo sem protestos. Saiu algemada para a rua, e entrou aos tropeções na carrinha que aguardava no passeio.
Já lá dentro, encostou o rosto ao vidro gelado, para tentar ver se tudo não passaria afinal de um sonho, e olhou uma última vez para a casa onde chegara há trinta anos atrás.
---



Tinha apenas sete anos. A mãe recomendara-lhe que obedecesse sempre aos patrões, que fosse bem comportada, que rezasse o terço todas as noites e pedisse sempre ao Senhor por ela e pelos seus oito irmãos. Maria das Dores fungava inconsolável enquanto a mãe lhe puxava as meias grossas de lã para o joelho, e lhe ajeitava o cobertor em torno do corpo, para tornar mais cómoda a viagem. Na mão colocaram-lhe um terço de contas de madeira, e ao seu lado uma trouxa de pano com alguma roupa, um santinho de papel e uma côdea de pão.
A criança chorou todo o caminho. O carro de bois arrastava-se por estradas de pedra e lama, e quase se desconjuntava de cada vez que uma roda encontrava um buraco. O espaço de carga estava todo ocupado com areia, retirada furtivamente do rio Cávado, para alimentar obras em curso na cidade.
A pequena nunca tinha saído da sua aldeia natal. Ouvia às vezes os adultos falarem das suas viagens a Braga para ver o médico, ou para visitar alguém no hospital. No imaginário das crianças da aldeia, Braga era a cidade onde se ia quando se ficava doente para já não voltar.
O dia amanhecia frio e chuvoso. A bruma começava a dispersar e deixava entrever a forma das primeiras casas, e de uma igreja. Vinte horas depois de deixar a casa de seus pais, Maria das Dores entrava finalmente nas ruas de Braga.
---

0 Comments:

Post a Comment

<< Home