Friday, October 14, 2005

sem título - Daniel Paio Maduro

Nunca me abandonam, estes meus amigos. Estão sempre presentes, eles são os meus momentos. A nossa relação não se extingue na amizade, existe como que uma cadeia alimentar entre nós. Este sistema alicerça-se no devorar do elemento mais fraco, e simultaneamente todos me consomem.O amigo - a que dou o nome de Pasto - é tranquilo e paciente, curador e destruidor, imenso e ausente. Tudo para ele tem um tempo. É estranho encontrar um ser completamente despojado de ansiedade e preocupação. Somente essa característica poderá justificar a passividade com que aceita ser diminuído a todos os momentos de mais um momento. O seu amigo mais próximo é verdadeiramente estranho, custa-me compreender como dois seres tão distintos se relacionam de uma forma tão doentia, o viver de um é simultaneamente a destruição de parte do outro. É do Rumina que vos falo, um ser completamente alucinado, com patologia de maníaco-depressivo. Vive em constante ansiedade acerca do que o Pasto lhe fará. Ora teme-o, ora deseja-o. No entanto, consome-o sofregamente com a cadência dos momentos. Existe uma energia transcendental que o empurra, que o puxa para ele, mas nunca o atinge. O Pasto é a presa, mas estranhamente a balança do poder pende para o seu lado – quando se esgota, todos terminamos.
Imaginem um torso, um ser desmembrado, encerrado num espaço, que cresce, aumenta, dilata, até que não há espaço para mais nada. Já conhecem o Gordo. É costume ouvir dizer que somos aquilo que comemos e o Gordo não é excepção. Houve fases da sua vida em que foi bem alimentado e, dessa forma, parte dele é saudável, abundante de boas recordações. Houve também fases de má alimentação, sem qualquer preocupação com o seu bem-estar, que o encheram de toxinas, azedume e azia. Este meu amigo possui uma característica pouco convencional, que tanto providencia estados de prazer, como estados de melancolia no Rumina. Ele regurgita aquilo que consome, mas não necessariamente pela ordem de entrada. Mais gravoso ainda, regurgita alimentos digeridos e alterados, que por vezes em nada correspondem ao alimento que supostamente lhe deu origem. Este regurgitar não é voluntário, é induzido pelo querer do Rumina. Porque deseja o Rumina o regurgitado do Gordo, e porque faz ele isso? O Rumina consome a montante e a jusante, o Pasto e o Gordo. Necessita do controlo, do poder, da suposta ordem que cria no caos em que vive. Ao atribuir razões e continuidade aos acontecimentos, cria um espaço de segurança, protege-se do Pasto. No entanto, é forçado a consumir o Pasto, de olhos vendados, até ao vómito. O regurgitar do Gordo é frequentemente consumido com livre arbítrio, excepto quando o vicio é mais forte que a sua própria vontade – a autocomiseração. Mas o Gordo prega-lhe partidas, é caprichoso, altera as memórias, apaga-as ou enfatiza-as. Acontece o impensável, o Gordo controla as acções do Rumina e desta forma escolhe a sua dieta, uma dieta desequilibrada, induzida por medos e preconceitos.
Esta cadeia alimentar tem um fim irremediavelmente previsto, a extinção do Pasto, do Rumina e por fim: o terminar da existência do Gordo por ausência de quem o alimente. Com o fim deles termino eu.
Resta-me o conforto de que a minha memória fará parte por tempo indeterminado dos amigos Gordos de outros como eu. Esta memoria como é evidente será deturpada pelo processo de regurgito desse Gordo.
Existem quem dê outros nomes a estes meus amigos: Futuro, Presente e Passado.

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